Parada no hall de entrada, deixou a bolsa despencar dos ombros enquanto os mocassins foram desprezados gentilmente para fora dos pés. O gato se esticou como elástico, fazendo um arco, do rabo apontado para o teto até as patas dianteiras. Escutou o ronronar de boas vindas, ele dançou por entre suas pernas, num zigue zague que se repetia a cada chegada.
Andou pelo apartamento vazio, uma peça de roupa a menos a cada cômodo vencido, o felino desviou das peças que caíram no chão. Tentou acender a luz do banheiro e lembrou que a lâmpada havia queimado ainda de manhã. Vasculhou as gavetas da cômoda de madeira em busca de velas aromáticas. Não tinha pensado em usá-las assim, mas, vá lá, de outra forma não aconteceria, pelo menos por enquanto. A água borbulhava num gorgolejar ritmado, preenchendo as curvas da banheira velha e descascada, o tom de rosa que a agradava tanto quanto um soco no meio da cara. Olhou-se no espelho. Entre luz e sombra, seu rosto parecia um mosaico feito em composição de tons alaranjados, como quando se erra o tom da base. Caminhou com as pontas dos dedos pelo mamilo arrepiado, descendo pela cintura e chegando ao umbigo. Apertou a camada de gordura acima do púbis, como se o gesto fosse capaz de arrancar as células adiposas mais teimosas do corpo. Se encarou, num escrutínio julgador, tal qual um juiz isento de imparcialidade. Mostrou os dentes no que poderia ser um sorriso, não fossem os olhos vermelhos injetados. Em voz alta, perguntou como estava. Respondeu que bem, arqueando a sobrancelha esquerda e piscando com o olho direito. Franziu a testa e o nariz, balançando a cabeça numa negativa seguida de um sussurro: “você está louca?”.
O gato ronronava de novo aos seus pés. De cócoras, encarou o bichano, perguntou se ele achava que ela estava louca. Gargalhou num som gutural, seguido de um choro compulsivo. Ficar louca era uma possibilidade, afinal estava no meio do banheiro, nua, à luz de velas falando com seu gato, logo após ter estabelecido um franco diálogo com o espelho. “Definitivamente preciso de alguém para conversar, ou de um bom vinho para dormir melhor.” Passou os dedos com unhas roídas pelas lágrimas que insistiam em seguir o curso da bochecha para o pescoço.
Foi até a cozinha, mas não encontrou nada. A última garrafa há muito se perdeu, numa noite em que não se sentia tão só.
Imersa na banheira, os cabelos dançando como algas acobreadas, viu a sombra bruxuleante das velas refletidas no teto, sentiu a água quente beliscar sua pele, ao mesmo tempo que os músculos relaxaram fibra a fibra. Esticou o dedão do pé até a torneira enferrujada que gemeu ao cessar a corrente de água. Fechou os olhos e se deixou embalar pelo vapor de lavanda que emergia, saboreou as últimas lágrimas insistentes. Madeleine Peyroux entoava melancólica como veludo em seus ouvidos, uma melodia que a embalou num passado não muito distante, onde uma felicidade doída se misturou com uma tristeza cortante. Haviam dançado no meio da sala, na noite em que ele partiu. Sabia que era a última vez que o veria, mas ainda assim nutria uma falsa esperança, um desejo quase ingênuo de que no último momento ele diria que ficaria.
O choro incontido irrompeu novamente, agora silencioso. A água fria arrepiou os pelos dos braços suspensos na borda, a escuridão invadiu o banheiro à medida que as velas definharam e a fez criar coragem para sair de seu transe nostálgico. O roupão branco a abraçou, calçou os chinelos felpudos depois do gato aceitar que ali não poderia mais ficar. Apesar do almoço ter sido o último contato com qualquer coisa que lembrasse uma refeição, não sentia fome. Fez um chá e, apenas por amor ao organismo, pegou algumas bolachas que sua vizinha, uma mãe-esposa-rainha-do-lar-impecável, havia feito a gentileza de lhe dar, com inconfundível sorriso em que um misto de pena e compaixão lhe dava ímpetos de puxar os cabelos da mulher como se fosse uma criança birrenta sendo contrariada, frisando que ela mesma tinha feito, uma receita da família, herança da mãe.
Como uma lagarta dentro de um casulo, aconchegou-se por entre os travesseiros e o edredom. O gato se aninhou nos pés da cama. Abriu o livro que já criava camadas de pó e esquecimento na cabeceira, mas não conseguiu chegar até o fim do capítulo. Adormeceu, os óculos pendurados na ponta do nariz, o livro repousado no peito. Dormiu o sono dos justos, diria a mãe. Mas a ausência de sonhos determinava que aquele não era o sono dos justos, mas de alguém que ao ter, algum dia, se dado ao luxo de fantasiar acordada, via agora a vida passar em preto e branco, desejando que a música nunca tivesse terminado de tocar.